Desde 2019, com a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência do Brasil, a educação brasileira parece estar à deriva. O ministério da Educação se transformou em uma verdadeira trincheira de terraplanistas e lunáticos, muito pouco ou quase nada preocupados com as diretrizes estratégicas para a educação da sociedade.
Mais recentemente, o contexto da pandemia trouxe novos desafios, para os quais o governo Bolsonaro tem se mostrado em despreparo absoluto. Em meio a tudo isso, aprovação do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), movimentou o debate nacional, diante das ameaças de ataques a um dos principais pilares do financiamento público à educação, uma conquista dos brasileiros e brasileiras.
Diante dos desafios para a educação brasileira nesse contexto, o Movimento dos Atingidos por Barragens conversou com Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que também é integrante da Plataforma Camponesa e Operária da Água e Energia (POCAE), da qual o MAB faz parte.
Confira a entrevista:
MAB: Qual a importância do Fundeb? O que ele inaugura de novo em 2007 em relação às formas de financiamento da educação básica que existiam anteriormente? Qual a sua avaliação dos resultados promovidos pelo Fundeb nesses últimos 13 anos de existência?
Heleno Araújo: O Fundeb tem uma grande importância para a educação básica, da creche ao ensino médio, e as suas modalidades, por exemplo, a educação especial, a educação de jovens e adultos, educação profissional, entre outras. É uma política que garantiu transparência à aplicação dos recursos na educação. A aprovação dele em 2007 foi importante porque ampliou a participação da União na contribuição para estados e municípios com recursos financeiros para ajudar a atender a educação básica, possibilitou a existência do piso salarial do professor e da professora a partir de 2008, e garantiu uma conquista histórica dos trabalhadores e trabalhadoras da educação em 2009, quando trouxe para dentro da LDB (Lei de Diretrizes e Bases) o conjunto da nossa categoria, ou seja, saímos daquilo que estava descrito como “profissionais do magistério”, o professor e a professora, e passou a ser denominado na Constituição Federal “profissionais da Educação”, o que inclui o porteiro da escola, o merendeiro, o pessoal do serviço de limpeza, as pessoas que trabalham nas secretarias das escolas, e que nós consideramos que são profissionais importantes e necessários para a formação cidadão dos nossos estudantes. Esse Fundeb de hoje contribui com 4.810 municípios, que recebem recursos da União ou dos estados, pois o grande beneficiário dos repasses desse fundo são os municípios, quando recebem recursos da União ou do estado. Os municípios sozinhos não teriam como atender a demanda do piso ou de ampliar as matrículas na educação básica. Ao mesmo tempo, os municípios são o ente federado que mais tem atuação na educação básica e o que menos arrecada impostos. Por isso a importância da contribuição dos estados e da União para os municípios. Se o Fundeb deixasse de existir, esses municípios não teriam condição de pagar os salários da educação, nem de manter as escolas abertas para atender à população de todo o país. Então é muito importante o que nós conquistamos em relação ao Fundeb agora na Câmara Federal.
Como você avalia a proposta que passou na Câmara?
A proposta que foi aprovada na Câmara não alcançou todas as nossas reivindicações. Por exemplo, nós queríamos que 80% do fundo fosse destinado ao salário dos profissionais da educação e foi aprovado 70%. Nós queríamos que o piso salarial fosse para os profissionais da educação e foi aprovado para os profissionais do magistério, mantendo o que existe hoje, sem ampliar. Nós reivindicamos que não se colocasse recursos para o desempenho dos municípios ou estados, ou seja, de acordo à “meritocracia”, e mesmo assim foi aprovado 2,5% dos recursos do Fundo para a meritocracia, para o desempenho dos estados e municípios, o que é uma contradição com os objetivos do Fundeb. Mesmo assim, nós apoiamos integralmente o relatório da deputada Professora Dorinha (DEM), por conta dos ataques do governo Bolsonaro. Foram três anos e meio de debate sobre esse tema no Congresso Nacional, e nesse um ano e seis meses do governo Bolsonaro eles não entraram no debate, não queriam saber de Fundeb. Ainda assim, conseguimos fazer com que a proposta que foi aprovada tivesse mais pontos positivos do que negativos. Ela vincula 70% para os profissionais da educação, o que é positivo. Amplia a participação da União no repasse de recursos para estados e municípios, que hoje é no mínimo 10% e em 2026 será no mínimo 23%. Cria um sistema híbrido de distribuição desses recursos, ou seja, se o estado não recebe complementação da União, mas dentro do estado tem um município que o custo aluno-ano é menor do que o nacional, esse dinheiro federal poderá ir direto para aquele município, e isso ajuda a reduzir as desigualdades entre os municípios naquele estado. Outra conquista importante para os nossos estudantes e para a educação básica no país é a referência do custo aluno-qualidade, que foi aprovado o texto e isso é importante também. Outro ponto positivo também é que essa PEC agora é permanente, vai para dentro da Constituição sem prazo para acabar. Essa era uma reivindicação nossa que tivemos vitória na Câmara. Então para enfrentar o Bolsonaro e seus ataques profundos contra o texto, foi importante essa aprovação.
Quais os desafios agora no Senado?
Pois é. Agora queremos que esse texto seja aprovado no Senado Federal, na votação que está marcada para o dia 18 de agosto. O texto do relator, o senador Flávio Arns (REDE), mantém todo o conteúdo que foi aprovado na Câmara, e isso é importante por dois motivos: primeiro porque foi devidamente negociado, conquistamos esse texto e agora precisamos dar continuidade; e por outra lado, evita novos ataques do governo em busca de alterar o texto, porque se o texto for alterado ele tem que voltar para a Câmara.
Manter o texto aprovado como Flávio Arns (REDE) fez dá agilidade para a votação no Senado. Votando no Senado, o Congresso Nacional vai promulgar a PEC sem precisar da sanção de Bolsonaro. Mas temos outra batalha para frente, porque para autorizar os estados e a União a repassar recursos para os municípios é preciso ter a lei que vai regulamentar essa emenda constitucional. Então, a lei que vai regulamentar essa emenda passa pelo crivo do Bolsonaro, que precisa sancionar, e aí ele pode colocar vetos e nos prejudicar. Então nós temos uma batalha grande pela frente.
Além de aprovar no Senado dia 18 de agosto, lutar pela lei de regulamentação, e que ela siga os caminhos do que foi aprovado na PEC pelo Congresso Nacional.
A discussão sobre o Fundeb acontece no contexto da pandemia da Covid-19, que também impõe desafios enormes no campo da educação. Agora, por exemplo, alguns estados já estão sinalizando as datas para retorno das aulas. Você acredita que é possível retomar as aulas? O sistema de ensino brasileiro está preparado pra isso?
Nós acreditamos que o momento certo não é agora. Porque a primeira orientação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que isso seja feito quando o vírus esteja sob controle. O que nós observamos é um aumento da contaminação e das mortes diárias. Isso mostra uma situação muito complicada que ainda estamos vivendo. Nós somos um país continental onde um terço dos estados apresentam aumento dos casos e mortes, e isso tem uma mobilidade. Um estado que hoje se encontra numa situação de elevação pode logo estar estável, depois em queda, depois voltar a crescer o número de mortes. Então para nós da CNTE, essa é uma resposta clara de que o vírus não está sob controle no nosso país. O vírus não estando controlado, nós da educação básica, estudantes e trabalhadores da educação, que somos 25% da população brasileira, seríamos colocados a nos movimentar, a ocupar os espaços, o transporte coletivo, o transporte escolar, o que pode aumentar a contaminação e mortes entre os estudantes da educação básica.
“Estamos bastante preocupados com a forma como estão debatendo esse retorno das aulas presenciais no contexto de uma pandemia sob a qual ainda não temos controle”.
Acreditamos que é necessário uma postura coerente por parte dos governos municipais e estaduais através das secretarias da educação, primeiro para trazer a participação de toda a comunidade escolar e associações de moradores na elaboração e construção de protocolos necessários para garantir uma segurança sanitária para toda a comunidade escolar. E pensar isso como um sistema, juntando o público o privado, da educação superior à educação básica, todos pensando e construindo coletivamente. E isso não está acontecendo pelo Brasil afora. Os governos estão impondo protocolos, e isso nos leva a pensar sobre outra dificuldade em boa parte das escolas privadas e na maioria das escolas públicas. Nós temos problemas de infraestrutura desde antes da pandemia. E para que se tenha as condições adequadas à higienização, é preciso um investimento muito alto em muitas escolas públicas desse país. E esse investimento não está chegando. O programa “Dinheiro na Escola” do governo federal, de 2019, aina não foi concluído, as escolas não receberam esse dinheiro. Então há uma falta de financiamento por parte do governo federal, principalmente, para garantir as condições mínimas necessárias para o funcionamento das escolas. Quando eu falo “condições mínimas necessárias”, é ter um banheiro que funcione, com água, o que a maioria das nossas escolas não tem. Por isso estamos muito preocupados com esses discursos, com essa pressão que os governadores e prefeitos estão tendo do setor privado, comércio, indústria, e do setor das escolas privadas, através da sua federação. E eles [governadores e prefeitos] acabam cedendo, criando protocolos de cima para baixo, sem a nossa participação, e querendo impor datas para o retorno das aulas presenciais, sem considerar que quem vai se expor à contaminação e até à morte são os nossos estudantes e os nossos trabalhadores.
Para além do retorno presencial às aulas, a pandemia da Covid-19 nos colocou o desafio de repensar várias questões relacionadas à vida e ao que muitos estão chamando de “o novo normal”. Em relação à educação, o que a Covid-19 nos coloca de desafios a médio e longo prazos?
Eu costumo dizer que nós temos leis adequadas no nosso país, temos resoluções do Conselho Nacional de Educação que são adequadas à necessidade de acesso à educação pública e para a permanência dos nossos estudantes, além da qualidade necessária. Então temos leis e resoluções do Conselho. Como é que nunca foram colocadas em prática essas legislações?A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação nacional, que é de 1996, tem elementos importantes de seu conteúdo que não foram colocados em prática nesse processo. Por exemplo, o repasse de recursos para que as Secretarias de Educação faça a gestão da educação. Isso está na lei desde 1996 e nunca foi colocado em prática. O Plano Nacional de Educação é outro instrumento que prevê metas e estratégias para a educação e que não foram colocadas em prática. A resolução do Conselho Nacional de Educação fala sobre a redução da quantidade de alunos por turma, da relação de professores, da relação de alunos com os funcionários da educação. Está em parecer de 2009 e 2010, que nunca foi colocado em prática. O que a pandemia nos traz? A necessidade de refletir sobre esses conteúdos conquistados em lei e colocá-los em prática. Porque quando se fala em reduzir o número de alunos por turma, nós podemos chegar a um número que foi apontado lá atrás, em 2009 e 2010, e que nunca foi colocado em prática, para garantir a qualidade. As escolas são tratadas de qualquer forma, com um número enorme de contratações temporárias, quando a Constituição Federal diz que o ingresso ao serviço público deve ser “exclusivamente” por concurso público. E claro que nós sabemos que tudo isso é feito de forma proposital, por governos como o de Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e agora Bolsonaro, que são privatistas, neoliberais, que não acreditam que o Estado tem o dever de garantir as políticas públicas para o nosso povo, entre eles, a educação. E como são governos privatistas, todo o ataque deles, inclusive o golpe de 2016, foi no sentido de não colocar medidas como essas em prática, fazer o sucateamento dos serviços públicos e depois privatizar.
Nosso grande receio nesse momento é o ataque do setor privado, da Fundação Lemann, da Fundação Roberto Marinho, e tantas outras, vendendo plataformas privadas para o setor público, não só para enfrentar a pandemia, mas colocando como uma vantagem o fato de reduzir a contratação de professores. Por isso, nós da CNTE afirmamos que queremos sim discutir essas plataformas e tecnologias, mas que sejam plataformas públicas, sem colocar o dinheiro do nosso povo na mão desse setor privado que se aproveita da pandemia para concentrar renda.
Veja bem, um levantamento recente mostrou que os bilionários do Brasil concentraram mais recursos durante o período da pandemia do que todo o recurso destinado ao Fundeb em 2020. De 18 de março a 12 de julho 58 bilionários aumentaram o seu patrimônio líquido em R$ 180 bilhões, enquanto o Fundeb, que atende mais de 40 milhões de pessoas tinha uma previsão de R$ 173 bilhões, podendo ser menos por causa da queda na receita. Então esse ataque do setor privado é o que nos preocupa nesse período de pandemia e após a pandemia.
(Portal MAB, 06/08/2020)
Fonte: CNTE
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